Hoje, quando lemos Gênesis 1—2, nossos
pensamentos vão para as aulas de biologia e física que tive durante o ensino
médio. Como a descrição bíblica da criação tem a ver com a teoria do big bang e com a
evolução?
Não há dúvidas de que Gênesis 1—2 tem um peso
na avaliação que fazemos desses relatos científicos modernos sobre as origens
do cosmo e do homem. Mas um momento de reflexão nos fará lembrar que nenhum
autor ou leitor antigo teria tido a ideia de fazer tal comparação. E certo que
o relato bíblico da criação não foi escrito para se contrapor a Charles Darwin
ou Stephen Hawking, mas foi escrito à luz de descrições rivais da criação.
E, graças às descobertas de arqueólogos e
especialistas em línguas antigas dos últimos duzentos anos, temos em mãos pelo
menos algumas daquelas ideias que têm disputado os corações e as mentes dos
antigos israelitas. Em vez de fornecer uma lista exaustiva dos muitos e
diferentes mitos dos vizinhos de Israel, citarei pontos de comparação e
contraste entre, de um lado, os relatos bíblicos e, de outro, os dos egípcios,
mesopotâmios e cananeus.
Começando pela época dos patriarcas e indo
até o restante do período do Antigo Testamento, os filhos de Abraão viveram no
meio de um mundo pagão. Só Israel adorava Yahweh, ao passo que as demais nações possuíam seus próprios
deuses e deusas — e também possuíam seus próprios relatos da criação. Uma vez
que o povo de Deus era constantemente tentado a adorar as divindades de outras
nações, não devemos ficar surpresos com o fato de que os relatos bíblicos sobre
a criação tenham sido elaborados de uma tal maneira que proporcionasse uma
clara distinção em relação aos relatos de outras nações. Assim mesmo, existem
semelhanças.
De qualquer modo, a leitura mais interessante
e produtiva dos relatos bíblicos da criação se dá à luz dos relatos rivais do
antigo Oriente Próximo. Entretanto, antes de proceder à comparação,
precisaremos descrever brevemente alguns dos principais relatos de criação
encontrados no antigo Oriente Próximo.
Egito
Ao longo de toda sua história e
particularmente na época de Moisés, Israel teve contato com os egípcios. A
tradição bíblica afirma que os israelitas deixaram o Egito debaixo da liderança
de Moisés, o qual foi criado e presumivelmente educado na própria casa do
faraó. Por esse motivo é razoável supor que ideias egípcias sobre a criação
fossem conhecidas desde o momento mais remoto da história de Israel como nação.
Surpreendentemente temos pouquíssimas
narrativas míticas contínuas na língua egípcia.1 As ideias egípcias
da criação são encontradas basicamente em textos de magia, particularmente em
textos escritos em sarcófagos e nas paredes de pirâmides, embora haja a exceção
da pedra Shabaka, que preserva o que é conhecido como teologia menfita.
Conquanto haja muitas semelhanças entre as diferentes descrições da criação
encontradas em textos egípcios, também existe uma variedade de metáforas que
são empregadas.[1]
[2] Atos
de criação também são atribuídos a várias divindades. Diferentes centros de
culto no Egito (Mênfis, Hermópolis, Heliópolis) possuíam sua própria versão da
criação, embora também possamos observar algumas tentativas de síntese.
A cosmologia básica dos egípcios parece
constante. As águas primordiais são denominadas Nun, e é das águas que surge a
criação. Uma idéia proeminente era que o deus criador, às vezes Atum e outras
vezes Amon-Ré, emergiu das águas por meio de um ato de autocriação e por meio
de si próprio desenvolveu os outros deuses e deusas que representam as várias
partes e forças da natureza.[3] A
elevação primeva foi a forma como a criação emergiu de Nun, talvez refletindo
miticamente o solo fértil que era a fonte de vida que ficava depois que
baixavam as inundações anuais do Nilo.
A religião egípcia nunca foi uma idéia
isolada, mas, antes, uma amalgamação e uma associação de conceitos religiosos
vagamente relacionados e derivados de uma variedade de centros religiosos.
Por isso, não devemos ficar surpresos com o fato de que em Mênfis, um desses
centros de culto, havia um mito rival de criação em torno do deus Ptah. A
expressão mais conhecida desse mito provém da assim chamada teologia menfita,
também conhecida como pedra Shabaka.[4] Este
último nome resulta do fato de que o texto está preservado numa pedra que foi
inscrita à época do faraó núbio Shabaqo (716-702 a.C.), embora os estudiosos
concordem que a composição é de um período muito anterior. Nesse relato, Ptah
amalgamou com Ta-tenen, o deus que representa a colina primeva, e, então, gera
o deus-sol. Dessa forma, Ptah, a divindade principal de Mênfis, substitui Atum
como o criador. O que, porém, nos interessa é o processo diferente de criação
empregado por Ptah. Em vez de espirrar ou masturbar, Ptah cria o mundo mediante
o uso de palavras de sua boca: “Assim todos os deuses nasceram, Atum e também
sua Enéade, pois é mediante aquilo que o coração planeja e a língua ordena que
cada fala divina se desenvolve”.[5]
Na literatura egípcia não há praticamente
nenhuma referência ou alusão à criação da humanidade. A informação que possuímos
é que os seres humanos foram criados a partir das lágrimas do deus do sol, uma
etiologia que talvez se baseie na similaridade das palavras egípcias chorar, povo e lágrimas.
Mesopotâmia.
A literatura mais antiga da região da Mesopotâmia,
aliás, a mais antiga literatura de que se tem conhecimento, procede da antiga
Suméria. E, embora os sumérios tenham deixado para a posteridade uma extensa
literatura sobre a criação, deixaremos de lado uma apresentação dessas ideias
acerca da criação para concentrar a atenção em dois textos da criação
existentes na literatura acádica. O acádico era a língua dos babilônios e
assírios. Estes últimos foram os herdeiros das ideias sumérias e eram contemporâneos
dos israelitas durante o período do Antigo Testamento.
O texto mais significativo sobre a criação
escrito em acádico tem o nome tirado das suas primeiras palavras, “Quando lá no
alto”, que em acádico é Enuma elish. Muito
embora a criação seja um elemento do mito, o propósito derradeiro da composição
foi proclamar a exaltação de Marduque como líder máximo do panteão. A maioria
dos estudiosos de hoje provavelmente associaria a exaltação de Marduque e a
composição desse texto ao reinado de Nabucodonosor I (século XII a.C.).
O texto começa com uma teogonia, ou seja, um
registro do nascimento e gerações dos deuses e deusas.[6] As
divindades mais antigas foram Tiamate e Apsu, as águas respectivamente do mar e
debaixo da terra. A mistura dessas águas produziu as próximas gerações dos
deuses e deusas. Logo houve um abismo de gerações com o qual foi preciso
lidar. O pai Apsu ficou cansado dos seus filhos barulhentos e, contra a vontade
da mulher, Tiamate, decidiu matar sua descendência divina. Esta última,
contudo, ouviu acerca da trama, e Ea, o deus da sabedoria, recitou palavras
mágicas e matou Apsu antes que ele pudesse agir.
Embora as ações de Ea tenham dado resultado
no curto prazo, também serviram para enraivecer Tiamat, uma adversária mais
assustadora do que Apsu. Nem Ea podia ter esperanças de subjugar Tiamate.
Todos pareciam impotentes até que Marduque, rebento de Ea e Damkina, se
apresentou para assumir o papel de herói. Ele, contudo, não se voluntariou sem
impor condições. Exigiu ser o rei dos deuses e, ao ser assim reconhecido,
partiu para enfrentar Tiamate em combate.
Nesse ínterim Tiamate havia nomeado Qingu
como líder de suas forças, aparentemente como seu consorte em lugar de Apsu.
Foi contra as forças conjuntas do caos que Marduque, por fim, guerreou.
A batalha entre Marduque e Tiamate é descrita
de modo gráfico. No ápice do conflito, Marduque soltou um vento que distendeu o
corpo da deusa, arremessando para dentro de sua boca uma flecha que rasgou sua
barriga e extinguiu sua vida. Com a morte de Tiamat, o exército que a apoiava,
e era chefiado por Qingu, fugiu em debandada. Tiamate havia dado as tábuas do
destino a Qingu, mostrando a soberania que ele tinha, mas Marduque as tomou
guardando-as consigo e, no final, entregou-as a Anu, o deus dos céus.
Marduque, então, voltou a atenção para o
corpo de Tiamate, o qual dividiu em duas partes, “como um peixe para secar”.[7] Com
uma metade ele fez os céus e com a outra, a terra. Usando os corpos celestes,
Marduque também estabeleceu o tempo. Depois disso Marduque decidiu fazer os
seres humanos:
Compactarei sangue, farei com que haja ossos,
Farei com que suqa um ser humano. Que seu nome seja
“Homem”.
Criarei a humanidade,
Levarão o fardo dos deuses, para que estes repousem.
Marduque, então, executou Qingu, o
deus-demônio, por causa de seus crimes, e com o sangue dele fez a humanidade.
Depois disso, os deuses honraram Marduque mediante a construção das cidades
Babilônia e Esagila, o templo-residência de Marduque. O Enuma elish termina
quando os deuses anunciam a glória de Marduque, pronunciando seus cinqüenta
nomes.
Um segundo texto, Atrahasis, cujo nome
se deve à sua principal personagem, apresenta um relato alternativo da criação
da humanidade.[8] A
primeira cena inicia numa época em que só os deuses existiam. Entretanto, o
conflito surge quando os deuses inferiores entram em greve contra os deuses
mais poderosos, representados por Enlil.
Aqueles vinham cavando canais de irrigação e
estavam cansados de seu trabalho. Fizeram então um piquete junto à residência
de Enlil e o resultado foi que o grande deus decidiu criar trabalhadores
alternativos. Belet-ili, a deusa do nascimento, é, então, orientada a fabricar
os primeiros seres humanos para “que suportem o jugo, a tarefa de Enlil. Que o
homem assuma o trabalho vil dos deuses”.[9] Para
realizar essa tarefa, Be- lit-ili, com a ajuda do deus sábio Enki, matou
We-ila, um dos deuses menos importantes, e misturou seu sangue com 0 barro,
desse modo produzindo a humanidade.
Canaã. Ao longo de
todo o período bíblico os israelitas foram tentados a adorar os deuses e deusas
dos antigos moradores da terra, os cananeus. Embora Davi tenha conseguido
remover da Palestina todos os representantes expressivos desse grupo, seus
parentes continuaram existindo no norte, onde hoje estão localizados, o Líbano
e a Síria. As divindades mais ativas de Canaã são bem-conhecidas: Baal, El,
Asera e Anate. Uma vez que a religião cananéia tinha uma atração assim tão
forte nos corações dos israelitas, é particularmente importante examinar o conceito
cananeu de criação. .
Na realidade, não se descobriu nenhum texto
sobre a criação entre as tábuas encontradas na antiga Ugarite, a principal
fonte de nosso conhecimento de literatura e religião cananéias. No entanto, é
possível que um episódio só parcialmente recuperado do famoso “ciclo de Baal”
contivesse tal narrativa, visto que a parte recuperada apresenta semelhança
formal com o Enuma elish, pois envolve um conflito entre o deus principal do
panteão (neste caso Baal) e o deus/deusa do mar (neste caso Yam). No texto
ugarítico ficamos sabendo que Yam tenta tomar o poder do panteão e declara Baal
seu prisioneiro. Baal resiste e faz ao deus artífice Kothar-wa-hasis a
encomenda de dois bastões. Com esses bastões Baal combate, derrota e bebe Yam.
A essa altura o texto está interrompido, mas muitos estudiosos acreditam que o
que veio após a derrota do mar (Yam) foi um relato de criação análogo ao de Enuma elish.[10]
[11]
Relatos concorrentes de criação
Como nosso conhecimento de outros textos
sobre a criação provenientes do antigo Oriente Próximo influencia nossa
interpretação de Gênesis 1—2? Para responder a esta pergunta, teremos de
prestar atenção tanto nas semelhanças quanto nas diferenças entre o texto
hebraico e os relatos mais vastos do Oriente Próximo.11 Uma
apresentação mais completa do quadro do relato da criação em Gênesis nos
aguarda num capítulo mais adiante. Aqui serei seletivo, dirigido pelos dados
textuais do antigo Oriente Próximo.
Existem certas semelhanças gerais bem como
específicas entre Gênesis 1—2 e outros textos de criação. Uns poucos
exemplos-chave serão ilustrativos.
Primeiramente, é interessante assinalar que a
maioria dos relatos pressupõe um período de caos, o qual é seguido pela ordem.
Além disso, o caos primevo é descrito como
uma massa de água. O Enuma elish descreve como Marduque criou o cosmo a partir do corpo
de Tiamat (o mar). O mito de Baal presumivelmente seguiu esse modelo com Baal
criando o mundo a partir de Yam (que também é o mar), ao passo que nos mitos
egípcios a elevação ou montículo primevo emana de Nun, que são as águas
primevas.
Gênesis 1 também descreve o material inicial
da terra como sem forma e vazio, havendo trevas sobre as águas, e, no segundo
dia, a aparição da terra é resultado da separação entre as águas dos céus e as
águas da terra (Gn 1.6). Desse modo parece existir uma similaridade na
concepção de criação a partir de uma massa indistinta.
Como exemplo de uma ligação específica,
devemos assinalar a teologia menfita (ver p. 83-84). Em Gênesis 1, a fala de
Deus tem o objetivo de realizar os diferentes atos de criação. Na teologia
menfita a palavra de Ptah traz à existência as coisas criadas.
Porém, mais significativo é, talvez, que
parece haver uma similaridade cada vez maior em certas concepções da criação da
humanidade. Mas aqui também detectamos diferenças.
Textos mesopotâmicos refletem bem de perto o
relato bíblico da criação dos seres humanos. Enuma elish narra como
Marduque abateu o deus-demônio Qingu, apanhou o sangue e o misturou com o
barro. Atrahasis descreve o morticínio do deus We-ila e como Belit-ili
mistura o sangue de We-ila com barro. Finalmente os deuses cospem naquela
mistura, e a humanidade passa a existir. Atrahasis, em
particular, deixa bem claro que os seres humanos são criados com um propósito.
Devem realizar trabalhos manuais para poderem substituir as divindades menores
que tinham entrado em greve.
O relato bíblico da criação também fala de
seres humanos que vieram a existir mediante a combinação de elementos constitutivos.
Adão é criado a partir do pó da terra e do sopro de Deus, o que provavelmente
indica a ligação do ser humano com a ordem criada e o relacionamento especial
que tem com a divindade. Mais tarde Eva é criada da costela de Adão. Um
estudioso identificou algo que, no seu entendimento, é significativo, a saber,
o uso da palavra costela no texto, pois as palavras sumérias para vida e costela soam
parecidas (ti[l]),u muito embora isso pareça forçado.
Os textos da criação em Gênesis tratam a
humanidade com mais respeito do que seus equivalentes mesopotâmicos. Na verdade,
Adão e Eva são criados para o trabalho manual, para cuidar do jardim, mas
também são descritos como criados à imagem de Deus, e o relacionamento com seu
Deus parece ser mais pessoal.[12]
[13]
Aqui podemos ver como um exame da literatura do antigo Oriente Próximo ilumina
o relato de Gênesis e a intenção do autor bíblico.
Assim mesmo, em um assunto específico, a
semelhança ainda nos deixa com perguntas. A criação de Adão ocorreu
literalmente da forma como é narrada ou o relato da criação de Adão é elaborado
de modo a nos ensinar coisas sobre a natureza da humanidade? Deus de fato
empregou o pó da terra para formar o corpo de Adão e soprou seu fôlego dentro
do corpo? Em caso afirmativo, então provavelmente devemos ver o relato
mesopotâmico como corrupção de uma verdade fundamental acuradamente preservada
na tradição bíblica.
O mais provável, contudo, é a idéia de que
Gênesis se apropriou da tradição do Oriente Próximo e então substituiu a cuspida
ou sangue divinos pelo sopro de Deus. Isso comunica tanto a verdade de que os
seres humanos são criaturas ligadas à terra e indivíduos que possuem um
relacionamento especial com Deus, pois foi Deus quem criou a humanidade.
Diferenças entre Gênesis e outros relatos de criação
Entretanto, ainda mais notável que as
semelhanças, são as diferenças que o relato de Gênesis possui com relação à
tradição mais disseminada sobre a criação no antigo Oriente Próximo. Em primeiro
lugar, observe-se uma diferença importante no processo de criação: a ausência
de conflito em Gênesis.
Em particular, os relatos mesopotâmicos e
cananeus da criação revelam um conflito no cerne da criação. Marduque derrota
as forças do caos (Tiamate), como também o faz Baal (Yam). Apesar de enormes
esforços para identificar vestígios de um mito de conflito, Yahweh não se defronta com nenhum rival do gênero no relato de
bíblico.[14]
Deus modela a massa aquosa num mundo belissimamente ordenado ao longo dos seis
dias da criação.[15]
É claro que isso ressalta as diferenças mais
importantes e fundamentais entre Gênesis e todos os demais relatos da criação e
destaca o tema isolado mais importante desses capítulos: Yahweh criou o cosmo! Marduque não o fez, nem Baal, nem Atum,
nem Re, nem qualquer outro deus. É claro que não houve conflito na época da
criação porque não existia algum rival que pudesse se posicionar contra Yahweh. O propósito dos textos da criação, quando lidos à luz de
relatos alternativos da época, foi asseverar a verdade sobre quem foi o
responsável por ela.
Sumário
Ler Gênesis 1—2 à luz de relatos egípcios,
mesopotâmicos e cananeus da criação, enriquece nosso entendimento do texto
bíblico, embora principalmente por meio de contraste. O principal contraste
tem a ver com a identidade e a natureza do Criador. O relato bíblico apresenta
um só Deus, alguém que é Deus e mais ninguém, que criou o mundo. Este Deus
único criou sem qualquer oposição. Mas nos relatos mesopotâmicos, e em relatos
cananeus relacionados, o cosmo veio a existir por causa de conflito. De acordo
com Gênesis, o conflito é introduzido no mundo não pelos deuses mas pela
rebelião da humanidade (Gn 3).
A diferença de concepção sobre a esfera
divina também explica por que há um contraste entre a presença ou ausência de
uma teogonia, ou seja, um relato sobre o nascimento dos deuses. Além do mais e
relacionado a isso, existe o fato de o texto bíblico afirmar que foram criadas
muitas coisas que aqueles povos acreditavam serem divinas. No Egito, por
exemplo, o principal deus e criador é, na maioria dos relatos, o sol, quer se
lhe dê o nome de Amom ou Atum ou Re. De acordo com a Bíblia, Yahweh criou o sol no quarto dia juntamente com os outros corpos
celestes.
Talvez o mais notável é que devamos ler o
relato da criação da humanidade à luz de conceitos mesopotâmicos. No Enuma elish os seres
humanos são uma união do barro com o sangue de um deus-demônio; na Bíblia, uma
união entre o pó e o sopro de Deus. Certamente isso não é acidental, mas é,
provavelmente, uma polêmica propositada da parte do autor bíblico. À superfície,
o relato bíblico tem uma nobreza e uma dignidade inexistentes nos relatos do
antigo Oriente Próximo.
Também é verdade que nas
duas tradições a esfera divina coloca os seres humanos para trabalhar, mas o
cultivo do jardim é um trabalho mais nobre do que escavar os canais de
irrigação, particularmente depois de ouvir as queixas dos deuses menores, os
quais, de acordo com Atrahasis, anteriormente tinham
aquela tarefa.
[1] Jacobus van Dijk, “Myth and mythmaking in
ancient Egypt”, em Civilizations of the
ancientNearEast, ed. por Jack M. Sasson (New York: Scribners, 1995), v.
3, p. 1697-8.
[2] Para uma síntese útil de idéias
cosmogônicas egípcias, ver John D. Currid, Ancient
Egypt and the Old Testament (Gramd Rapids: Baker, 1997), p. 53-73.
[3] Relatos egípcios empregam metáforas diferentes
para descreverem o pro
cesso
de emanação das outras divindades a partir do deus criador. As duas mais
proeminentes são espirrar e masturbar.
[4] Veja The
context of Scripture, ed. Willim W. Hallo e K Lawson Younger Jr (Boston:
Brill, 1997), v. 1, p. 21 e 22.
[5] Ibid, p. 22.
[6]De
acordo com W. G. Lambert (“Kosmogonie”, em Reallexikonflir
Assyrio- logie [Berlin/Leipzig: deGruyter, 1990] v. 6, p. 218-22), a
Mesopotâmia está, na verdade, mais interessada em teogonia do que em
cosmogonia. E claro que as duas estão integralmente relacionadas, visto que os
deuses representam aspectos da ordem criada.
[7] A tradução de Benjamin R. Goster, The contexto of Scripture (Leiden: BrilI, 1997),
v. 1, p. 398.
[8] W. G. Lambert e A. R. Millard, Atra-Hsis: The Babylonian story of theflood (Oxford:
Clarendon Press, 1969). Veja também Alan R. Millard, “A new Babylonian
‘Genesis’ story”, Tyndale Bulletin 18
(1967): 3-18.
[9] Benjamin R. Foster, Before the muses (Bethesda: CLD, 1993), v. 1, p.
165.
[10] VerThorkild Jacobsen, “The battle between Marduk
andTiamat”,/«Mr«ij/ of American OrientalSociety
88 (1968)> 104-108.
[11] E claro que existem diferenças entre os
diferentes textos do Oriente Próximo e até dentro dos relatos das várias regiões
do Oriente Próximo, mas, tendo em vista o objetivo deste capítulo, nos
concentraremos nas semelhanças e diferenças entre Gênesis e os textos do antigo
Oriente Próximo como um todo.
[12] Samuel N. Kramer, The Sumerians (Chicago: University of Chicago Press,
1963), p. 149.
[13] Howard N. Wallace ressalta que tanto o
texto mesopotâmico quanto o bíblico apresentam o trabalho manual como o
propósito da criação da humanidade; ele, contudo, comete o erro de não apontar
para as diferenças em termos de qualidade do trabalho e de relacionamento com a
esfera divina {The Eden narrative
[Atlanta: Scholars, 1985], p. 70).
[14] Vejajon D. Levenson, Creation and the Persistence ofEvil (Princeton:
Prin- ceton University Press, 1988). Conquanto se deva admitir de imediato que
a tradição poética se refletirá no uso, pelo relato da criação, de conflito
entre Yahweh e os monstros do mar
(Leviatã, também conhecido na literatura cananéia antiga como um associado do
deus Yam; ver SI 74). No entanto, aqui vemos o autor empregando licença poética
para transmitir a mensagem de que Yahweh e
não Baal é quem controla as forças do caos. Tais expressões poéticas não devem
ser lidas como afirmações normativas sobre como a criação de fato se deu.
[15] Indo mais adiante, é provável que Gênesis
1 pelo menos deixe implícito que Deus criou a massa aquosa em vez de pressupor
que ela estava simplesmente ali, o que parece ser o caso em outros textos da
criação. Entretanto, não é uma questão fácil se Gênesis 1 ensina “criação a
partir do nada”. Isso será discutido no capítulo 7.