Ao morrer Maomé (632 d.C), enquanto seu primo e genro 'Ali-ibn Abi Tãlib e seu tio Ibn 'Abbãs velavam piedosamente o corpo sem vida, os outros partidários se reuniram ao lado para escolher um sucessor ou califa (Khalífah, de khlf, "seguir"). Esse título significará daí em diante que o califa reúne em si duas funções que deveriam ficar separadas em qualquer outro ser humano: a função militar de comandar crentes (amir al-mu'miríin) e a função religiosa de imã dos muçulmanos (imãm al-muslimln). Ao amanhecer, depois de longas deliberações, a assembleia decidiu que o primeiro sucessor seria Abu-Bakr, sogro do profeta e companheiro da Hégira em Medina, escolhido por Maomé para dirigir, em seu lugar, as orações em comum. Durante os dois anos de seu califado, AbQ-Bakr estabeleceu definitivamente o domínio muçulmano na Arábia e empreendeu expedições contra os beduínos revoltosos e contra a Síria bizantina. Sucessor de Abu-Bakr e segundo califa na sucessão sunita, Ornar (634-644) conquistou a Síria e boa parte do Egito e da Mesopotâmia. Foi depois de sua morte que começaram as grandes secessões religiosas, que resultariam na formação de seitas cujo número é tradicionalmente fixado em 272. Na verdade, os partidários de Ali, primo e genro do profeta por ter-se casado com sua filha Fátima, esperavam que ele fosse então investido da dignidade de califa, mas o aristocrata Otmã (644-656), da família dos Omíadas de Meca, antigos adversários de Maomé, foi eleito em seu lugar. A ideologia dos rawãfids ("os que repudiam [os primeiros califas]") xiitas ("partidários", de shi 'at 'AH, "partido de Ali") exige que a sucessão se estabeleça segundo laços de parentesco mais estreitos. Segundo eles, o califa não deve ser apenas curaixita, mas também hashimita e fatímida, ou seja, não apenas da tribo do profeta, mas também de sua família e filho legítimo do casamento de Fátima com 'Ali ibn Abi Tãlib. Em outras palavras, a ShVa queria formar uma dinastia Álida mas a sorte decide por uma dinastia Omíada.
Em 656, o omíada Otmã é assassinado por um grupo de partidários de Ali, que não renega os assassinos. Eleito califa (quarto na ordem sucessória dos sunitas), Ali deverá enfrentar uma dupla temível que o acusa de cumplicidade no assassinato: o poderoso governador omíada da Síria, Moawia, e seu astuto general 'Amr ibn al-'Ãs, conquistador do Egito. Quando Ali estava vencendo a batalha de Siffín no Eufrates contra Moawia (657), 'Amr ibn al-'Ãs mandou pregar folhetos com textos do Corão nas lanças de seus homens e o exército de Ali recuou. O mesmo Amr ibn al-'Ãs propôs uma arbitragem entre Ali e Moawia e representou este último com tanta habilidade que os xiitas consideraram-se vencidos. Surgiu então uma nova complicação que cerceou ainda mais Ali em seus nobres escrúpulos: um grupo considerável de seu exército, os carijitas ou "dissidentes" por excelência (de khrj-, "sair, partir"), não reconheceu a arbitragem dos homens, pretextando que lã hukmatu Ma Allãh, "não há outro julgamento senão o de Deus". Os carijitas, puritanos do islamismo, não se preocupavam com o estabelecimento de linhagens dinásticas. Queriam que a dignidade do califado fosse eletiva e coubesse ao muçulmano mais devoto, sem distinção de tribo ou de raça: se merecedor, até mesmo um escravo etíope teria mais direitos ao califado que um curaixita. Essa doutrina era repudiada, também por outras características, pela maioria dos muçulmanos, para os quais perder a qualidade de membros da comunidade (ummah) dos fiéis era tão grave, se não mais, quanto uma excomunhão na cristandade medieval. Ora, ao contrário dos puritanos cristãos ulteriores, os puritanos muçulmanos sustentavam que a fé não basta, que há necessidade de obras para ter-se certeza da seriedade de um fiel. Por conseguinte, um muçulmano que pecasse deixava de fazer parte da assembléia dos fiéis. Esse respeitável zelo pela pureza moral combinava-se, nos carijitas, com escrúpulo de restabelecer a verdade histórica; eles afirmavam, portanto, que o Corão não é totalmente revelado. Em vez de combater Moawia, Ali voltou-se contra os carijitas que, afastando-se de Moawia, assassinaram Ali em 661. O califado coube a Moawia, fundador da dinastia dos Omíadas de Damasco (661-750).
ELIADE, Mírcea; COULIANO, Ioan P. Dicionário das Religiões. 2a ed. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo, SP, Ed. Martins Fontes, 2003 - Capítulo 20.
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