segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

A criação em relatos no Antigo Oriente próximo

Hoje, quando lemos Gênesis 1—2, nossos pensamentos vão para as aulas de biologia e física que tive durante o ensino médio. Como a descrição bíblica da criação tem a ver com a teoria do big bang e com a evolução?
Não há dúvidas de que Gênesis 1—2 tem um peso na ava­liação que fazemos desses relatos científicos modernos sobre as origens do cosmo e do homem. Mas um momento de reflexão nos fará lembrar que nenhum autor ou leitor antigo teria tido a ideia de fazer tal comparação. E certo que o relato bíblico da criação não foi escrito para se contrapor a Charles Darwin ou Stephen Hawking, mas foi escrito à luz de descrições rivais da criação.
E, graças às descobertas de arqueólogos e especialistas em línguas antigas dos últimos duzentos anos, temos em mãos pelo menos algumas daquelas ideias que têm disputado os corações e as mentes dos antigos israelitas. Em vez de fornecer uma lista exaustiva dos muitos e diferentes mitos dos vizinhos de Israel, citarei pontos de comparação e contraste entre, de um lado, os relatos bíblicos e, de outro, os dos egípcios, mesopotâmios e cananeus.
Começando pela época dos patriarcas e indo até o restante do período do Antigo Testamento, os filhos de Abraão viveram no meio de um mundo pagão. Só Israel adorava Yahweh, ao passo que as demais nações possuíam seus próprios deuses e deu­sas — e também possuíam seus próprios relatos da criação. Uma vez que o povo de Deus era constantemente tentado a adorar as divindades de outras nações, não devemos ficar surpresos com o fato de que os relatos bíblicos sobre a criação tenham sido elabo­rados de uma tal maneira que proporcionasse uma clara distinção em relação aos relatos de outras nações. Assim mesmo, existem semelhanças.
De qualquer modo, a leitura mais interessante e produtiva dos relatos bíblicos da criação se dá à luz dos relatos rivais do antigo Oriente Próximo. Entretanto, antes de proceder à comparação, precisaremos descrever brevemente alguns dos prin­cipais relatos de criação encontrados no antigo Oriente Próximo.
Egito

Ao longo de toda sua história e particularmente na época de Moisés, Israel teve contato com os egípcios. A tradição bíblica afirma que os israelitas deixaram o Egito debaixo da lide­rança de Moisés, o qual foi criado e presumivelmente educado na própria casa do faraó. Por esse motivo é razoável supor que ideias egípcias sobre a criação fossem conhecidas desde o momento mais remoto da história de Israel como nação.
Surpreendentemente temos pouquíssimas narrativas míticas contínuas na língua egípcia.1 As ideias egípcias da criação são encontradas basicamente em textos de magia, particularmente em textos escritos em sarcófagos e nas paredes de pirâmides, embora haja a exceção da pedra Shabaka, que preserva o que é conhecido como teologia menfita. Conquanto haja muitas seme­lhanças entre as diferentes descrições da criação encontradas em textos egípcios, também existe uma variedade de metáforas que são empregadas.[1] [2] Atos de criação também são atribuídos a várias divindades. Diferentes centros de culto no Egito (Mênfis, Hermópolis, Heliópolis) possuíam sua própria versão da criação, embora também possamos observar algumas tentativas de síntese.
A cosmologia básica dos egípcios parece constante. As águas primordiais são denominadas Nun, e é das águas que surge a criação. Uma idéia proeminente era que o deus criador, às vezes Atum e outras vezes Amon-Ré, emergiu das águas por meio de um ato de autocriação e por meio de si próprio desenvolveu os outros deuses e deusas que representam as várias partes e forças da natureza.[3] A elevação primeva foi a forma como a criação emergiu de Nun, talvez refletindo miticamente o solo fértil que era a fonte de vida que ficava depois que baixavam as inunda­ções anuais do Nilo.
A religião egípcia nunca foi uma idéia isolada, mas, antes, uma amalgamação e uma associação de conceitos religiosos vaga­mente relacionados e derivados de uma variedade de centros reli­giosos. Por isso, não devemos ficar surpresos com o fato de que em Mênfis, um desses centros de culto, havia um mito rival de criação em torno do deus Ptah. A expressão mais conhecida desse mito provém da assim chamada teologia menfita, também conhe­cida como pedra Shabaka.[4] Este último nome resulta do fato de que o texto está preservado numa pedra que foi inscrita à época do faraó núbio Shabaqo (716-702 a.C.), embora os estudiosos concordem que a composição é de um período muito anterior. Nesse relato, Ptah amalgamou com Ta-tenen, o deus que repre­senta a colina primeva, e, então, gera o deus-sol. Dessa forma, Ptah, a divindade principal de Mênfis, substitui Atum como o criador. O que, porém, nos interessa é o processo diferente de criação empregado por Ptah. Em vez de espirrar ou masturbar, Ptah cria o mundo mediante o uso de palavras de sua boca: “Assim todos os deuses nasceram, Atum e também sua Enéade, pois é mediante aquilo que o coração planeja e a língua ordena que cada fala divina se desenvolve”.[5]
Na literatura egípcia não há praticamente nenhuma referên­cia ou alusão à criação da humanidade. A informação que pos­suímos é que os seres humanos foram criados a partir das lágrimas do deus do sol, uma etiologia que talvez se baseie na similaridade das palavras egípcias chorar, povo e lágrimas.
Mesopotâmia.

A literatura mais antiga da região da Mesopotâmia, aliás, a mais antiga literatura de que se tem conheci­mento, procede da antiga Suméria. E, embora os sumérios tenham deixado para a posteridade uma extensa literatura sobre a criação, deixaremos de lado uma apresentação dessas ideias acerca da criação para concentrar a atenção em dois textos da criação existentes na literatura acádica. O acádico era a língua dos babilônios e assírios. Estes últimos foram os herdeiros das ideias sumérias e eram contem­porâneos dos israelitas durante o período do Antigo Testamento.
O texto mais significativo sobre a criação escrito em acádico tem o nome tirado das suas primeiras palavras, “Quando lá no alto”, que em acádico é Enuma elish. Muito embora a criação seja um elemento do mito, o propósito derradeiro da composição foi proclamar a exaltação de Marduque como líder máximo do pan­teão. A maioria dos estudiosos de hoje provavelmente associaria a exaltação de Marduque e a composição desse texto ao reinado de Nabucodonosor I (século XII a.C.).
O texto começa com uma teogonia, ou seja, um registro do nascimento e gerações dos deuses e deusas.[6] As divindades mais antigas foram Tiamate e Apsu, as águas respectivamente do mar e debaixo da terra. A mistura dessas águas produziu as próximas gerações dos deuses e deusas. Logo houve um abismo de gera­ções com o qual foi preciso lidar. O pai Apsu ficou cansado dos seus filhos barulhentos e, contra a vontade da mulher, Tiamate, decidiu matar sua descendência divina. Esta última, contudo, ouviu acerca da trama, e Ea, o deus da sabedoria, recitou palavras mági­cas e matou Apsu antes que ele pudesse agir.
Embora as ações de Ea tenham dado resultado no curto prazo, também serviram para enraivecer Tiamat, uma adversária mais assustadora do que Apsu. Nem Ea podia ter esperanças de subju­gar Tiamate. Todos pareciam impotentes até que Marduque, rebento de Ea e Damkina, se apresentou para assumir o papel de herói. Ele, contudo, não se voluntariou sem impor condições. Exi­giu ser o rei dos deuses e, ao ser assim reconhecido, partiu para enfrentar Tiamate em combate.
Nesse ínterim Tiamate havia nomeado Qingu como líder de suas forças, aparentemente como seu consorte em lugar de Apsu. Foi contra as forças conjuntas do caos que Marduque, por fim, guerreou.
A batalha entre Marduque e Tiamate é descrita de modo gráfico. No ápice do conflito, Marduque soltou um vento que distendeu o corpo da deusa, arremessando para dentro de sua boca uma flecha que rasgou sua barriga e extinguiu sua vida. Com a morte de Tiamat, o exército que a apoiava, e era chefiado por Qingu, fugiu em debandada. Tiamate havia dado as tábuas do destino a Qingu, mostrando a sobe­rania que ele tinha, mas Marduque as tomou guardando-as consigo e, no final, entregou-as a Anu, o deus dos céus.
Marduque, então, voltou a atenção para o corpo de Tiamate, o qual dividiu em duas partes, “como um peixe para secar”.[7] Com uma metade ele fez os céus e com a outra, a terra. Usando os corpos celestes, Marduque também estabeleceu o tempo. Depois disso Marduque decidiu fazer os seres humanos:
Compactarei sangue, farei com que haja ossos,
Farei com que suqa um ser humano. Que seu nome seja “Homem”.
Criarei a humanidade,
Levarão o fardo dos deuses, para que estes repousem.
Marduque, então, executou Qingu, o deus-demônio, por causa de seus crimes, e com o sangue dele fez a humanidade. Depois disso, os deuses honraram Marduque mediante a construção das cidades Babilônia e Esagila, o templo-residência de Marduque. O Enuma elish termina quando os deuses anunciam a glória de Marduque, pronunciando seus cinqüenta nomes.
Um segundo texto, Atrahasis, cujo nome se deve à sua prin­cipal personagem, apresenta um relato alternativo da criação da humanidade.[8] A primeira cena inicia numa época em que só os deuses existiam. Entretanto, o conflito surge quando os deuses inferiores entram em greve contra os deuses mais poderosos, repre­sentados por Enlil.
Aqueles vinham cavando canais de irrigação e estavam cansados de seu trabalho. Fizeram então um piquete junto à residência de Enlil e o resultado foi que o grande deus decidiu criar trabalhadores alternativos. Belet-ili, a deusa do nas­cimento, é, então, orientada a fabricar os primeiros seres huma­nos para “que suportem o jugo, a tarefa de Enlil. Que o homem assuma o trabalho vil dos deuses”.[9] Para realizar essa tarefa, Be- lit-ili, com a ajuda do deus sábio Enki, matou We-ila, um dos deuses menos importantes, e misturou seu sangue com 0 barro, desse modo produzindo a humanidade.
Canaã. Ao longo de todo o período bíblico os israelitas foram tentados a adorar os deuses e deusas dos antigos moradores da terra, os cananeus. Embora Davi tenha conseguido remover da Palestina todos os representantes expressivos desse grupo, seus parentes continuaram existindo no norte, onde hoje estão locali­zados, o Líbano e a Síria. As divindades mais ativas de Canaã são bem-conhecidas: Baal, El, Asera e Anate. Uma vez que a religião cananéia tinha uma atração assim tão forte nos corações dos israelitas, é particularmente importante examinar o con­ceito cananeu de criação. .
Na realidade, não se descobriu nenhum texto sobre a criação entre as tábuas encontradas na antiga Ugarite, a principal fonte de nosso conhecimento de literatura e religião cananéias. No entanto, é possível que um episódio só parcialmente recuperado do famoso “ciclo de Baal” contivesse tal narrativa, visto que a parte recuperada apresenta semelhança formal com o Enuma elish, pois envolve um conflito entre o deus principal do panteão (neste caso Baal) e o deus/deusa do mar (neste caso Yam). No texto ugarítico ficamos sabendo que Yam tenta tomar o poder do pan­teão e declara Baal seu prisioneiro. Baal resiste e faz ao deus artí­fice Kothar-wa-hasis a encomenda de dois bastões. Com esses bastões Baal combate, derrota e bebe Yam. A essa altura o texto está interrompido, mas muitos estudiosos acreditam que o que veio após a derrota do mar (Yam) foi um relato de criação aná­logo ao de Enuma elish.[10] [11]
Relatos concorrentes de criação
Como nosso conhecimento de outros textos sobre a criação prove­nientes do antigo Oriente Próximo influencia nossa interpretação de Gênesis 1—2? Para responder a esta pergunta, teremos de prestar atenção tanto nas semelhanças quanto nas diferenças entre o texto hebraico e os relatos mais vastos do Oriente Próximo.11 Uma apresentação mais completa do quadro do relato da criação em Gênesis nos aguarda num capítulo mais adiante. Aqui serei seletivo, dirigido pelos dados textuais do antigo Oriente Próximo.
Existem certas semelhanças gerais bem como específicas en­tre Gênesis 1—2 e outros textos de criação. Uns poucos exemplos-chave serão ilustrativos.
Primeiramente, é interessante assinalar que a maioria dos relatos pressupõe um período de caos, o qual é seguido pela ordem.
Além disso, o caos primevo é descrito como uma massa de água. O Enuma elish descreve como Marduque criou o cosmo a partir do corpo de Tiamat (o mar). O mito de Baal presumivelmente seguiu esse modelo com Baal criando o mundo a partir de Yam (que também é o mar), ao passo que nos mitos egípcios a elevação ou montículo primevo emana de Nun, que são as águas primevas.
Gênesis 1 também descreve o material inicial da terra como sem forma e vazio, havendo trevas sobre as águas, e, no segundo dia, a aparição da terra é resultado da separação entre as águas dos céus e as águas da terra (Gn 1.6). Desse modo parece exis­tir uma similaridade na concepção de criação a partir de uma massa indistinta.
Como exemplo de uma ligação específica, devemos assinalar a teologia menfita (ver p. 83-84). Em Gênesis 1, a fala de Deus tem o objetivo de realizar os diferentes atos de criação. Na teolo­gia menfita a palavra de Ptah traz à existência as coisas criadas.
Porém, mais significativo é, talvez, que parece haver uma similaridade cada vez maior em certas concepções da criação da humanidade. Mas aqui também detectamos diferenças.
Textos mesopotâmicos refletem bem de perto o relato bíblico da criação dos seres humanos. Enuma elish narra como Marduque abateu o deus-demônio Qingu, apanhou o sangue e o misturou com o barro. Atrahasis descreve o morticínio do deus We-ila e como Belit-ili mistura o sangue de We-ila com barro. Finalmente os deuses cospem naquela mistura, e a humanidade passa a existir. Atrahasis, em particular, deixa bem claro que os seres humanos são criados com um propósito. Devem realizar trabalhos manuais para poderem substituir as divindades menores que tinham entra­do em greve.
O relato bíblico da criação também fala de seres humanos que vieram a existir mediante a combinação de elementos consti­tutivos. Adão é criado a partir do pó da terra e do sopro de Deus, o que provavelmente indica a ligação do ser humano com a ordem criada e o relacionamento especial que tem com a divindade. Mais tarde Eva é criada da costela de Adão. Um estudioso identificou algo que, no seu entendimento, é significativo, a saber, o uso da palavra costela no texto, pois as palavras sumérias para vida e costela soam parecidas (ti[l]),u muito embora isso pareça forçado.
Os textos da criação em Gênesis tratam a humanidade com mais respeito do que seus equivalentes mesopotâmicos. Na ver­dade, Adão e Eva são criados para o trabalho manual, para cuidar do jardim, mas também são descritos como criados à imagem de Deus, e o relacionamento com seu Deus parece ser mais pessoal.[12] [13] Aqui podemos ver como um exame da literatura do antigo Oriente Próximo ilumina o relato de Gênesis e a intenção do autor bíblico.
Assim mesmo, em um assunto específico, a semelhança ainda nos deixa com perguntas. A criação de Adão ocorreu literalmente da forma como é narrada ou o relato da criação de Adão é elabo­rado de modo a nos ensinar coisas sobre a natureza da humani­dade? Deus de fato empregou o pó da terra para formar o corpo de Adão e soprou seu fôlego dentro do corpo? Em caso afirma­tivo, então provavelmente devemos ver o relato mesopotâmico como corrupção de uma verdade fundamental acuradamente pre­servada na tradição bíblica.
O mais provável, contudo, é a idéia de que Gênesis se apro­priou da tradição do Oriente Próximo e então substituiu a cus­pida ou sangue divinos pelo sopro de Deus. Isso comunica tanto a verdade de que os seres humanos são criaturas ligadas à terra e indivíduos que possuem um relacionamento especial com Deus, pois foi Deus quem criou a humanidade.
Diferenças entre Gênesis e outros relatos de criação
Entretanto, ainda mais notável que as semelhanças, são as dife­renças que o relato de Gênesis possui com relação à tradição mais disseminada sobre a criação no antigo Oriente Próximo. Em pri­meiro lugar, observe-se uma diferença importante no processo de criação: a ausência de conflito em Gênesis.
Em particular, os relatos mesopotâmicos e cananeus da cria­ção revelam um conflito no cerne da criação. Marduque derrota as forças do caos (Tiamate), como também o faz Baal (Yam). Apesar de enormes esforços para identificar vestígios de um mito de conflito, Yahweh não se defronta com nenhum rival do gênero no relato de bíblico.[14] Deus modela a massa aquosa num mundo belissimamente ordenado ao longo dos seis dias da criação.[15]
É claro que isso ressalta as diferenças mais importantes e fundamentais entre Gênesis e todos os demais relatos da criação e destaca o tema isolado mais importante desses capítulos: Yahweh criou o cosmo! Marduque não o fez, nem Baal, nem Atum, nem Re, nem qualquer outro deus. É claro que não houve conflito na época da criação porque não existia algum rival que pudesse se posicionar contra Yahweh. O propósito dos textos da criação, quando lidos à luz de relatos alternativos da época, foi asseverar a verdade sobre quem foi o responsável por ela.
Sumário
Ler Gênesis 1—2 à luz de relatos egípcios, mesopotâmicos e cananeus da criação, enriquece nosso entendimento do texto bíblico, embora principalmente por meio de contraste. O princi­pal contraste tem a ver com a identidade e a natureza do Criador. O relato bíblico apresenta um só Deus, alguém que é Deus e mais ninguém, que criou o mundo. Este Deus único criou sem qualquer oposição. Mas nos relatos mesopotâmicos, e em relatos cananeus relacionados, o cosmo veio a existir por causa de con­flito. De acordo com Gênesis, o conflito é introduzido no mundo não pelos deuses mas pela rebelião da humanidade (Gn 3).
A diferença de concepção sobre a esfera divina também explica por que há um contraste entre a presença ou ausência de uma teogonia, ou seja, um relato sobre o nascimento dos deuses. Além do mais e relacionado a isso, existe o fato de o texto bíblico afir­mar que foram criadas muitas coisas que aqueles povos acredita­vam serem divinas. No Egito, por exemplo, o principal deus e criador é, na maioria dos relatos, o sol, quer se lhe dê o nome de Amom ou Atum ou Re. De acordo com a Bíblia, Yahweh criou o sol no quarto dia juntamente com os outros corpos celestes.
Talvez o mais notável é que devamos ler o relato da criação da humanidade à luz de conceitos mesopotâmicos. No Enuma elish os seres humanos são uma união do barro com o sangue de um deus-demônio; na Bíblia, uma união entre o pó e o sopro de Deus. Certamente isso não é acidental, mas é, provavelmente, uma polêmica propositada da parte do autor bíblico. À superfí­cie, o relato bíblico tem uma nobreza e uma dignidade inexis­tentes nos relatos do antigo Oriente Próximo.
Também é verdade que nas duas tradições a esfera divina coloca os seres humanos para trabalhar, mas o cultivo do jardim é um trabalho mais nobre do que escavar os canais de irrigação, particularmente depois de ouvir as queixas dos deuses menores, os quais, de acordo com Atrahasis, anteriormente tinham aquela tarefa.



[1]       Jacobus van Dijk, “Myth and mythmaking in ancient Egypt”, em Civilizations of the ancientNearEast, ed. por Jack M. Sasson (New York: Scribners, 1995), v. 3, p. 1697-8.
[2]       Para uma síntese útil de idéias cosmogônicas egípcias, ver John D. Currid, Ancient Egypt and the Old Testament (Gramd Rapids: Baker, 1997), p. 53-73.
[3] Relatos egípcios empregam metáforas diferentes para descreverem o pro­
cesso de emanação das outras divindades a partir do deus criador. As duas mais proeminentes são espirrar e masturbar.    
[4]       Veja The context of Scripture, ed. Willim W. Hallo e K Lawson Younger Jr (Boston: Brill, 1997), v. 1, p. 21 e 22.
[5] Ibid, p. 22.
[6]De acordo com W. G. Lambert (“Kosmogonie”, em Reallexikonflir Assyrio- logie [Berlin/Leipzig: deGruyter, 1990] v. 6, p. 218-22), a Mesopotâmia está, na verdade, mais interessada em teogonia do que em cosmogonia. E claro que as duas estão integralmente relacionadas, visto que os deuses representam aspectos da ordem criada.
[7]       A tradução de Benjamin R. Goster, The contexto of Scripture (Leiden: BrilI, 1997), v. 1, p. 398.
[8]       W. G. Lambert e A. R. Millard, Atra-Hsis: The Babylonian story of theflood (Oxford: Clarendon Press, 1969). Veja também Alan R. Millard, “A new Babylonian ‘Genesis’ story”, Tyndale Bulletin 18 (1967): 3-18.
[9] Benjamin R. Foster, Before the muses (Bethesda: CLD, 1993), v. 1, p. 165.
[10]     VerThorkild Jacobsen, “The battle between Marduk andTiamat”,/«Mr«ij/ of American OrientalSociety 88 (1968)> 104-108.
[11]     E claro que existem diferenças entre os diferentes textos do Oriente Pró­ximo e até dentro dos relatos das várias regiões do Oriente Próximo, mas, ten­do em vista o objetivo deste capítulo, nos concentraremos nas semelhanças e diferenças entre Gênesis e os textos do antigo Oriente Próximo como um todo.
[12]      Samuel N. Kramer, The Sumerians (Chicago: University of Chicago Press, 1963), p. 149.
[13]      Howard N. Wallace ressalta que tanto o texto mesopotâmico quanto o bíblico apresentam o trabalho manual como o propósito da criação da humani­dade; ele, contudo, comete o erro de não apontar para as diferenças em termos de qualidade do trabalho e de relacionamento com a esfera divina {The Eden narrative [Atlanta: Scholars, 1985], p. 70).
[14]      Vejajon D. Levenson, Creation and the Persistence ofEvil (Princeton: Prin- ceton University Press, 1988). Conquanto se deva admitir de imediato que a tradição poética se refletirá no uso, pelo relato da criação, de conflito entre Yahweh e os monstros do mar (Leviatã, também conhecido na literatura cananéia antiga como um associado do deus Yam; ver SI 74). No entanto, aqui vemos o autor empregando licença poética para transmitir a mensagem de que Yahweh e não Baal é quem controla as forças do caos. Tais expressões poéticas não devem ser lidas como afirmações normativas sobre como a criação de fato se deu.
[15]      Indo mais adiante, é provável que Gênesis 1 pelo menos deixe implícito que Deus criou a massa aquosa em vez de pressupor que ela estava simplesmente ali, o que parece ser o caso em outros textos da criação. Entretanto, não é uma questão fácil se Gênesis 1 ensina “criação a partir do nada”. Isso será discutido no capítulo 7.

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