"Holy blues"(blues religioso) é um evidente oximoro, (uma figura retórica que consiste em reunir palavras aparentemente contraditórias – paradoxo). (Dicionário Houaiss). Blues religioso é um oximoro se o blues é considerado como "a música do diabo", um principio sustentado por muitos cantores de blues "reformados" e pelos "santos" de algumas igrejas afro-americanas. O blues não é religioso e a música religiosa não é o blues. O blues celebra os prazeres da carne, enquanto que a música sagrada celebra a libertação das amarras mundanas. Um é o azeite e o outro é a água benta, não podem ser misturados. Ao menos, isso é o que alguns quiseram.
Numa época considerada como as vozes gêmeas da cultura afro-americana, as tradições gospel e blues, tendo sido julgadas gradativamente com os dois lados de uma linha divisória de caráter dual que somente pode ser atravessada deixando a alma em perigo. Temos acreditado que as escolhas dos afro-americanos eram de mútua exclusão: o blues ou a música gospel, Deus ou o Diabo, o céu ou o inferno. O cantor de blues escolhia as segundas opções, às vezes estabelecendo pactos faustianos (como, conforme ao que se diz, fez Tommy Johnson) para adquirir um domínio mais amplo da "música do diabo".
No momento atual muitos fãs consideram aos cantores de blues, principalmente os cantores do Delta do Mississipi, como os equivalentes afro-americanos do século XX dos poetas românticos do século XIX, que se rebelaram contra as convenções sociais com sua arte e morreram jovens pela sua inclinação à tuberculose, á sífilis, ou ao suicídio.
O mito do poema no estilo Byroniano, desafiador, autodestruidor manteve sua enorme força física e repercussão durante mais de cento e cinqüenta anos da cultura ocidental.
Para o artista romântico tanto a vida quanto a arte devem desafiar os tabus, desencadear um conflito interno e externo, e finalmente levar o artista até o martírio. Também tem sido a razão de ser de muitas estrelas do rock, vivas e mortas. O mito explica-nos que a vida e a arte são inseparáveis.
O problema de projetar esse mito sobre os cantores de blues estriba em que a cultura na qual eles viveram e trabalharam não tinha nenhum vínculo tangível com a tradição romântica. Embora alguns bluesmen acreditassem estar tocando a música do diabo e poucos deles vangloriavam-se disso adotando nomes como "Devil Son-in-Law"2, nenhum deles parece ter equiparado o "desafio demoníaco" a uma via alternativa para chegar a uma verdade mais elevada, com o objetivo evidente dos românticos europeus (uma meta exprimida na famosa frase da obra Proverbs of Hell, de William Blake: "O caminho do excesso conduz ao palácio da sabedoria"). A deificação romântica do indivíduo é essencialmente alheia à cultura afro-americana, e a projeção de um personagem byroniano nos cantores de blues (principalmente, sem dúvida, em Robert Johnson) nos fala mais sobre o observador do que sobre o observado.
Não e necessário dizer que o dualismo da "música do diabo" como oposta completamente às "canções de louvor à Deus", é alguma coisa que os intelectuais brancos imaginaram simplesmente para recriar o bluesman à nossa própria imagem. Na verdade, existem suficientes provas para asseverar que os cantores de blues podiam apegar-se a uma ou às duas sensibilidades. Existem também razões para acreditar que a cultura na qual viveram era mais misericordiosa com eles do que sua retórica religiosa, a olho nu, poderia sugerir. Como explicar então, que os homens que trabalhavam como cantores de blues e pregadores não se transformassem em parias das suas comunidades?
O blues e a música religiosa desempenhavam diferentes funções sociais na cultura afro-americana. As experiências exemplificativas estavam em desacordo, mas os músicos ligados a elas não se encontravam tão afastados entre si como nosso paradigma do bluesman byroniano poderia sugerir. O blues nasceu no interior de uma cultura afro-americana no momento em que as igrejas extáticas Holiness e Pentecostal estavam-se espalhando, e estes credos populares acolheram expressões musicais ecléticas, no nosso caso o gospel ou holy blues.
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1 Torch songs: canções sentimentais nas quais se lamenta a perda ou falta de correpondência de um amor.
2 “O genro do diabo": Um dos apelidos que William Bunch pôs a si mesmo (imagem 2).
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